Nas paisagens extensas e onduladas do norte de Mato Grosso, o som do galope ecoa como prece. Nas manhãs de feriado, enquanto a neblina ainda roça as pastagens e os ipês dormem cobertos de orvalho, grupos de cavaleiros se reúnem silenciosamente nos arredores das vilas. Não é uma cavalgada comum. Ali, a montaria se transforma em rito, o caminho em altar, e cada passo dos animais ressoa como ladainha ancestral.
Esses desfiles devocionais percorrem trilhas que cortam o cerrado, ligando comunidades rurais a capelas, cruzeiros, imagens sagradas ou fontes de água tidas como abençoadas. O gesto de cavalgar, nesses dias, é revestido de símbolos — um retorno aos modos de fé que nasceram com a terra e floresceram nos quintais de barro, nas rezas ao entardecer e nos festejos simples, mas profundamente enraizados.
Não se trata apenas de tradição rural, mas de uma expressão viva de religiosidade comunitária. Homens e mulheres de todas as idades montam seus cavalos não por vaidade ou exibição, mas em oferta espiritual. Alguns caminham por promessas feitas, outros em gratidão pelas chuvas, pela saúde ou pelas colheitas fartas. E há também aqueles que cavalgam pela memória — de pais, avós e antepassados que trilharam os mesmos caminhos.
Durante os feriados locais, como o de São João, Nossa Senhora Aparecida ou datas cívico-religiosas menos conhecidas, as cavalgadas se tornam o ponto alto da celebração. Reúnem fé, cultura, resistência e um profundo senso de pertencimento. O cerrado, nesse contexto, deixa de ser apenas território físico: ele se torna espaço sagrado em movimento.
Este artigo percorre, em ritmo de marcha, as camadas simbólicas, históricas e coletivas desses trajetos de fé. Vamos da preparação cuidadosa das montarias até os momentos de chegada e consagração, entendendo como a devoção segue montada, firme nas trilhas do tempo e do chão batido.
O Caminho da Devoção Montada: Percursos Tradicionais em Feriados Religiosos Locais
O cerrado do norte de Mato Grosso, com sua vegetação rala, galhos retorcidos e horizontes abertos, não é apenas cenário — é testemunha. Testemunha de passos lentos, de trotadas solenes, de promessas antigas que se renovam a cada feriado. Nos dias de celebração religiosa, os caminhos da fé não se fazem a pé — se fazem a cavalo, sob o sol firme, com a poeira levantando como incenso invisível.
Nesses feriados, não é raro que o trabalho na roça seja suspenso, os portões das fazendas fiquem abertos e as estradas de terra ganhem outro sentido. Os moradores se mobilizam cedo: é dia de cavalgada devocional, e a paisagem muda de tom. Cavaleiros e amazonas vindos de bairros rurais, sítios e povoados distantes se encontram em pontos de partida combinados, e dali seguem juntos — não por competição, mas por comunhão.
A força desses trajetos está em sua repetição simbólica. Mesmo sem placas ou sinalizações, todos sabem por onde ir. A terra guarda as marcas. As árvores, as sombras. O vento parece lembrar. São percursos tradicionalmente ligados a datas sagradas, como:
- Festa de São João, com cavalgadas que seguem em direção a fogueiras abençoadas e igrejas decoradas com bandeirinhas;
- Dia de Nossa Senhora Aparecida, em que comitivas atravessam córregos para chegar às capelas dedicadas à padroeira;
- Celebrações de São Sebastião, com cortejos montados que partem de áreas de mata e seguem rumo a cruzes de madeira fincadas no alto de morros.
Entre Veredas e Capelas: As Rotas Mais Cultuadas Pelas Cavalgadas de Fé
Os trajetos percorridos pelas cavalgadas são, na maioria das vezes, não oficiais — trilhas abertas pelo uso ancestral, ligando comunidades afastadas a pequenos santuários, capelinhas escondidas e pontos de devoção marcados por promessas.
Essas rotas incluem:
- Caminhos entre matas de cerrado e lavouras abandonadas, resgatando trilhas usadas pelos antigos tropeiros;
- Travessias de pequenos riachos, onde os cavalos são conduzidos com calma, e os cavaleiros, muitas vezes, param para molhar o rosto e agradecer;
- Pausas em clareiras e pontos altos, onde se fazem rezas, entoam-se cantos e há bênçãos espontâneas feitas por anciãos da comunidade.
A paisagem se torna um livro litúrgico. Cada curva tem um nome, cada árvore tem uma história. Em certos trechos, moradores decoram o caminho com:
- Bandeiras coloridas dos santos padroeiros;
- Altares improvisados com flores do mato e velas;
- Pequenas cruzes de madeira com nomes de devotos falecidos;
- Mensagens de fé escritas à mão em pedaços de tecido amarrados aos galhos.
Esse movimento de enfeitar o trajeto reforça que a fé não está apenas no destino — ela está no caminho inteiro.
Há quem compare essas rotas mato-grossenses com outras manifestações regionais. Um paralelo possível está no artigo Trajetos Litúrgicos com Paradas de Fé nas Comunidades de Encosta do Sul de Minas em Feriados Locais, onde os fiéis também percorrem estradas de terra guiados por fé comunitária, símbolos florais e memórias do sagrado. No entanto, no cerrado, há o elemento único da montaria como meio de devoção, ampliando o gesto e tornando cada passo do cavalo uma extensão do corpo e da alma.
Ao final da trilha, a chegada é sempre envolta em emoção. Muitos chegam com lágrimas nos olhos, carregando imagens, terços, chapéus nas mãos e uma fé que parece maior do que o corpo. A cavalgada termina, mas o percurso interno, aquele que move o espírito, continua — silencioso, forte, eterno.
Os Preparativos da Jornada: Fé, Adornos e Rezas Guiadas Sobre o Lombo do Cavalo
Antes de qualquer cavalgada devocional, existe um tempo de preparação que carrega a mesma solenidade da partida. Organizar a montaria para um desfile de fé no cerrado é um processo coletivo e silenciosamente ritualizado. Nele, cada gesto carrega mais do que intenção prática — carrega memória, devoção e respeito por aquilo que será trilhado. A cavalgada começa muito antes do primeiro passo do animal; ela começa no cuidado dos detalhes, no olhar sobre a sela, na mão que passa óleo sobre o couro, no silêncio entre uma prece e outra.
Durante os dias que antecedem o feriado, é comum ver famílias inteiras envolvidas nos preparativos. Não apenas os cavaleiros, mas também mulheres, crianças e anciãos contribuem na arrumação dos animais, na escolha dos trajes e na preparação das oferendas que serão levadas durante o trajeto. Tudo se transforma em ato de fé compartilhada.
A Montaria como Extensão do Corpo e do Espírito
No universo das cavalgadas devocionais, o cavalo não é apenas meio de transporte — ele é companheiro sagrado, extensão física e simbólica do fiel. Seu cuidado reflete a seriedade da jornada e o respeito pelo que será vivido. Antes da saída, são realizados diversos rituais práticos e simbólicos:
- Banho e escovação cuidadosa do animal, mesmo em períodos secos, utilizando água poupada com zelo;
- Adorno dos arreios com fitas, terços pendurados no peito do cavalo, e pequenos retalhos com nomes de familiares por quem se oferece a caminhada;
- Ajuste cerimonial da sela, que não é qualquer uma: muitas vezes é guardada para momentos especiais, enfeitada com rendas ou couro pintado.
Os cavaleiros também se preparam com o mesmo esmero. Suas vestes são escolhidas com reverência: chapéus limpos, camisas com os nomes dos santos protetores, faixas com inscrições de gratidão ou pedido de bênção. É comum ver:
- Lenços amarrados no pescoço com imagens religiosas;
- Camisetas personalizadas com frases como “Pela fé eu cavalgo” ou “São João me guia”;
- Chapéus com penas, medalhas ou pequenas cruzes bordadas à mão.
Essa indumentária coletiva gera uma estética sagrada, que se molda conforme a região, mas sempre comunica pertencimento, respeito e intenção espiritual. É uma fé que se veste, se mostra e se move com altivez.
Outro elemento marcante dos preparativos é a reza guiada que antecede a cavalgada. Em muitos vilarejos, antes da saída, todos se reúnem — montados ou a pé — para um momento de oração conduzido por um ancião, uma líder religiosa local ou um integrante respeitado do grupo. Nesses momentos:
- Reza-se o Pai Nosso em uníssono, com os chapéus ao peito e os olhos baixos;
- Canta-se a Ave Maria Sertaneja, enquanto as montarias permanecem imóveis, como se também ouvissem;
- Alguém lê uma passagem da Bíblia ou compartilha um testemunho breve;
- Um padre ou representante da comunidade abençoa os animais, com ramos verdes molhados em água e óleo.
Essa bênção sela o início da jornada com proteção e significado. A cavalgada que se segue já não é apenas deslocamento rural — ela é ato cerimonial em marcha.
Esse momento de preparação é vivido com um misto de introspecção e alegria contida. Há risos, sim, mas também silêncios densos. Há abraços demorados, mas também olhos úmidos. Porque quem cavalga nesses dias não o faz sozinho: leva consigo promessas antigas, nomes lembrados, esperanças renovadas.
No cerrado, onde o vento sopra forte e os caminhos são largos, cada cavaleiro parte não apenas em direção a um destino, mas em busca de sentido para os passos que a vida lhe pede que continue trilhando.
A Trilha em Festa: Pausas, Missas Campais e Trocas Simbólicas na Estrada
No percurso das cavalgadas devocionais, o trajeto nunca é apenas uma linha reta entre dois pontos. Cada parada tem uma razão, cada sombra acolhe uma lembrança, cada pedra no caminho é também um sinal. A estrada é feita de encontros e intervalos sagrados, onde o tempo desacelera para que o coração da comunidade possa pulsar junto — em oração, em partilha, em memória.
Nas trilhas do cerrado norte-mato-grossense, a fé não se limita à chegada: ela se revela sobretudo no meio do caminho. Os grupos, organizados em fileiras ou pequenos blocos, seguem um ritmo próprio, respeitando o passo dos animais, o cansaço dos mais velhos e os convites da natureza para repousar e celebrar. E é nesses momentos de pausa que os laços se firmam, que os gestos ganham mais sentido.
Ritos de Convivência ao Longo do Caminho
Ao longo das trilhas percorridas nos feriados religiosos, ocorrem paradas simbólicas que se tornam verdadeiros rituais comunitários. Essas pausas não são apenas logísticas, mas espirituais. Em clareiras abertas ou à sombra de árvores centenárias, realizam-se encontros que reafirmam a força da devoção partilhada. Em muitos desses momentos, é possível observar:
- Missas campais realizadas sob toldos ou tendas, com altar improvisado sobre o lombo de um carro-de-boi ou uma mesa de madeira coberta por toalhas bordadas;
- Bênçãos individuais dos cavalos e cavaleiros, onde cada um se aproxima para receber uma cruz traçada na testa, junto ao animal;
- Cantorias guiadas por violeiros ou anciãs, entoando benditos e louvores que aquecem o coração mesmo em meio ao cansaço da caminhada;
- Partilha de alimentos preparados nas vésperas, como bolos de milho, pamonhas, pães caseiros e café coado em chaleiras de ferro.
Essas pausas reforçam o aspecto comunitário da cavalgada. Ali, ninguém é estranho: os desconhecidos se tornam irmãos de fé, os forasteiros são acolhidos como parte da missão. As crianças correm entre os cavalos com liberdade e respeito, e os mais velhos distribuem conselhos, histórias e bênçãos com generosidade.
Em certos trajetos, a trilha passa por lugares sagrados não oficiais, como:
- Cruzeiros de madeira fincados em morros, muitas vezes decorados com velas e fitas;
- Árvores marcadas por rezas antigas, onde a comunidade acredita que milagres ocorreram;
- Fontes d’água consideradas abençoadas, onde muitos param para lavar o rosto, fazer pedidos ou agradecer.
O rito de parar para orar, comer e conversar é tão importante quanto o cavalgar. É na pausa que o espírito respira, que a fé se reencontra com a humanidade do cansaço, do cuidado, da escuta. Há beleza no gesto de oferecer um copo d’água, um pedaço de bolo ou um sorriso silencioso a quem segue ao lado.
Essas práticas encontram ressonância em manifestações semelhantes de outras regiões. O artigo Caminhadas de Fé em Feriados de Padroeiros nas Colinas do Interior de Pernambuco também retrata como os pontos de parada ganham valor simbólico e espiritual, sendo espaços de celebração e aprendizado. Assim como lá, aqui no cerrado as pausas representam continuidade — não são interrupções, mas pulsações naturais do percurso devocional.
No cerrado, a trilha é sempre mais do que geografia: ela é tecido de relações. Cada parada é um ponto de costura entre passado e presente, entre chão e céu, entre cavalo e cavaleiro. E quando o grupo retoma o caminho, após cada pausa, segue não apenas alimentado no corpo — mas renovado na alma.
Manifestações Culturais nas Chegadas: Fé, Festa e Memória nos Desfiles Devocionais
Se a saída é marcada pelo silêncio reverente e o trajeto pela troca solidária, a chegada da cavalgada é puro símbolo em movimento. O que era peregrinação se torna celebração. O som das patas no chão dá lugar aos aplausos, os cantos devocionais se misturam com os ritmos das festas, e a poeira da estrada se converte em tapete de honra. Ao final da rota, as comunidades recebem os cavaleiros como heróis da fé, não por glória individual, mas por terem mantido viva uma travessia coletiva.
No norte de Mato Grosso, esses momentos de chegada costumam ocorrer em praças centrais, adros de igrejas, ou mesmo espaços abertos próximos a capelas e cruzeiros. Nesses lugares, a fronteira entre o sagrado e o festivo se dissolve. As expressões culturais locais emergem como continuação do rito, manifestando-se em dança, canto, comida e gesto — tudo com a mesma intensidade espiritual que moveu os corpos durante o trajeto.
A Entrada nas Vilas e o Reconhecimento Coletivo
A entrada dos cavaleiros nas vilas ou povoados é um momento cuidadosamente preparado, muitas vezes precedido por foguetórios, repique de sinos e cantos litúrgicos vindos da igreja matriz. A cavalgada, agora transformada em desfile devocional, avança em formação, liderada por estandartes com imagens de santos e faixas com frases de gratidão.
Entre os gestos mais comuns nessa chegada festiva, destacam-se:
- Entrega de fitas coloridas aos santos, que simbolizam promessas cumpridas ou novos pedidos;
- Oferecimento de flores à padroeira ou padroeiro da comunidade, especialmente rosas e palmas colhidas durante o trajeto;
- Passagem sob arcos decorados com palha, tecido e folhagens, construídos pelos moradores locais;
- Benção final conduzida por um sacerdote ou liderança religiosa, com uso de água benta lançada sobre os cavalos e cavaleiros.
Ao redor, o povo se junta. Crianças sobem nas cercas, idosos ajeitam cadeiras na sombra, comerciantes distribuem refrescos caseiros. Todos ali estão para ver mais do que cavalos: estão para testemunhar a permanência de uma identidade que resiste sobre o lombo de um animal e no compasso de uma tradição partilhada.
As manifestações culturais que se seguem muitas vezes são preparadas pelas próprias comunidades, envolvendo diferentes gerações e talentos locais:
- Apresentações de catira e siriri, com roupas típicas e sapateado ritmado ao som de sanfona e violão;
- Corais religiosos compostos por moradores, entoando ladainhas acompanhadas por instrumentos de percussão simples;
- Encenações populares sobre a vida do santo celebrado, geralmente realizadas por crianças e adolescentes;
- Distribuição simbólica de lembranças, como ramos bentos, pequenas imagens de santos ou medalhinhas feitas artesanalmente.
Em muitas localidades, o encerramento do desfile também é o início de um grande almoço comunitário, com mesas compridas dispostas ao ar livre, onde se serve arroz com pequi, carne ensopada, mandioca cozida e bolos típicos. Tudo é partilhado, do alimento à memória.
Não há ali público e espetáculo. Todos são parte de um mesmo enredo, de uma mesma fé vivida e celebrada. A cavalgada não é vista como evento, mas como renovação de um pacto espiritual com o território, com o sagrado e com os ancestrais que abriram o caminho.
Ao fim do dia, quando os cavalos já repousam e os chapéus descansam nos varais, fica no ar uma mistura de pó, cheiro de comida e música distante. Mas acima de tudo, fica a certeza de que a fé cavalgada chegou — e chegou inteira, coletiva, emocionada.
Guardiões da Tradição: Transmissão Geracional e Desafios de Continuidade nas Cavalgadas Devocionais
Se os cavalos conduzem o corpo pela trilha, são as memórias que guiam a alma. E nessas cavalgadas de fé que cortam o cerrado norte-mato-grossense, o que se carrega não é apenas o peso dos arreios, mas o legado dos que vieram antes. A continuidade dessas rotas não acontece por acaso — ela depende da força invisível dos guardiões da tradição, que mantêm acesa a chama devocional mesmo diante das transformações do tempo.
Esses guardiões não usam coroas nem vestes pomposas. São homens e mulheres do campo, de chapéu suado e fala mansa, que conhecem cada curva da trilha, cada árvore onde se parou para rezar, cada cruz plantada por mãos que hoje já descansam. São eles que, silenciosamente, ensinam os mais jovens a montar não só com técnica, mas com respeito, a orar não só com palavras, mas com postura.
Resistência Rural e Fé Compartilhada no Tempo Presente
Em muitas comunidades do interior mato-grossense, as cavalgadas de fé se tornaram o elo mais forte entre gerações. Não se trata apenas de uma tradição equestre, mas de um modo de transmitir valores, pertencimento e fé através da prática viva. Crianças pequenas são levadas no colo ou em cavalos mansos guiados pelos pais; adolescentes iniciam suas primeiras montarias acompanhados dos avós. E assim, aos poucos, o caminho vai sendo herdado pelo exemplo.
Entre os gestos de transmissão mais frequentes, destacam-se:
- A entrega de objetos simbólicos, como arreios antigos, terços, medalhas ou selas de família;
- Histórias contadas ao pé da sela, nas noites que antecedem a cavalgada, recheadas de ensinamentos e causos devocionais;
- Instruções práticas com valor espiritual, como cuidar do animal com zelo, manter o silêncio em certos trechos e respeitar os líderes da comitiva;
- Ensino oral de cânticos religiosos, ladainhas e benditos que devem ser entoados durante a marcha.
Esses rituais pedagógicos reforçam a ideia de que a cavalgada é também uma escola popular de espiritualidade. Ali, não há quadros-negros nem provas escritas, mas há aprendizado profundo sobre fé, humildade, partilha e território.
No entanto, esse ciclo de transmissão enfrenta hoje alguns desafios que colocam em risco sua continuidade. Entre os principais obstáculos estão:
- A crescente urbanização das zonas rurais, que afasta os jovens dos rituais comunitários e dos saberes do campo;
- A precarização das rotas, muitas delas ameaçadas por desmatamento, cercamentos de propriedades ou destruição de marcos devocionais;
- A redução do apoio institucional, já que muitas cavalgadas não contam com estrutura, segurança ou incentivo por parte das autoridades locais;
- A perda de líderes comunitários, anciãos que falecem sem que seus saberes tenham sido sistematizados ou documentados.
Mesmo assim, há resistência. Há retorno. Em várias localidades, jovens têm se organizado para manter as tradições vivas, muitas vezes aliando novas tecnologias — como a gravação de vídeos, criação de páginas em redes sociais ou levantamento de trajetos em mapas digitais — à essência oral e coletiva da prática. É uma forma de cavar novos caminhos sem abandonar as pegadas antigas.
Assim, as cavalgadas de fé no cerrado continuam. Às vezes menores, outras mais silenciosas, mas sempre vivas. Porque onde há alguém disposto a ensinar com o corpo e ouvir com o coração, há tradição que não se apaga. O cerrado não esquece quem o atravessa com fé.
Para Seguir Cavalgando com a Tradição Viva
Ao final do percurso, quando o cavalo repousa sob a sombra e o chapéu já não protege do sol, mas resguarda a memória, fica o silêncio bom de quem cumpriu um rito com o corpo inteiro. Não se trata de chegar a um lugar geográfico, mas de atravessar com dignidade o território do tempo e da fé. As cavalgadas devocionais no cerrado norte-mato-grossense não são apenas eventos locais — são formas de gravar o sagrado sobre a terra, de imprimir passos no chão que guardam mais do que poeira: guardam intenção, história e comunhão.
A cada nova edição, a cada novo feriado em que os cavalos saem em fileira pelas estradas de chão batido, algo ancestral desperta. Há no ritmo do trote uma cadência que conversa com o coração do sertanejo, com os cantos dos mais velhos e com as promessas sussurradas ao pé da sela. Mesmo quando os desafios se impõem — a urbanização, a perda das lideranças, a dispersão da juventude — a tradição resiste porque pulsa no gesto coletivo.
Os que hoje seguram as rédeas o fazem também pelos que vieram antes. Cada cruz fincada no caminho, cada altar de folhas improvisado, cada reza dita em voz baixa carrega o peso simbólico de gerações. E assim, o caminho continua sendo tecido por mãos firmes e vozes que sabem da importância de manter a fé em movimento.
Enquanto houver alguém disposto a montar com o coração aceso, o cerrado seguirá sendo altar. E a cavalgada, uma oração que caminha.
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